
Ela parecia ter conhecimento dos fatos que lhe iriam acontecer. Meio bruxa, meio fada, sabia que teria que ter forças para lidar com aquele mundo novo. Ainda que meditativa, relutante e desorientada ela embarcou naquele navio. O balanço do mar revolto fez com que ela ficasse enjoada e, inevitavelmente, ela vomitou. Vomitou o vômito mais amargo de sua vida, uma coisa sem cor vinda de suas entranhas mais profundas. Ninguém viu. Ela calou-se.
Destemida enfrentou furacões, amedrontada encarou a deriva da embarcação e fez daquela travessia, consistente e áspera, sua fonte de energia. Buscou, sem mediocridade, encontrar graça na viagem. Acredita que teve êxito, pois passou por certos e momentâneos instantes de prazer.
Machucou e foi machucada pelas tábuas do deque atingido, soltou gritos mudos para se fazer enxergar. Nada viu. Ela cegou-se na solidão.
Reparou em cada pedaço de gente encostada ao convés, aquela gente parecia encantada com uma flauta que nunca tocara. Era um pessoal adormecido e robotizado pelo comandante daquela construção destinada a navegar em mares irados, lastimosos e severos. Ela manteve-se atenta aos vasos, já sem flores e confirmou-se só, pode contemplar, sem pressa, uns cubículos onde toda a gente dormia e chamava, maravilhada, de cabine.
Viu, com melancolia e uma incapacidade heróica de ater-se ao que era visto, o passadiço e o calado do navio. Ela agitou-se.
Porém, deliciou-se e perdeu-se em seus pensamentos quando pousou seus olhos na âncora vermelha. Naquele instrumento náutico, metálico e em forma de cruz, estaria a solução para o final da travessia, era uma questão de tempo. A âncora fixaria, temporariamente, a embarcação em fundos rochosos, lodosos ou arenosos. Ela nadadia incessantemente até sua primeira praia. O vento soprou forte e contrário e as almas escolhidas ainda não estavam prontas para o porto.
Ela cambaleou.
Porto escolhido, porto expremido, porto escavado, porto feito por outras almas.
A euforia tomou conta da moça de forma rápida, intensa e retilínea. Não haviam mais dúvidas sobre o aportar. O navio iria atracar a qualquer momento.
E ela não mais contaria as horas na sua antiga apulheta de areia colorida, não mais choraria a saudade da princesa, não mais reinaria absoluta no coração e no corpo do rei. Ela estava recoberta por encantos, fascinações e explosões de exaltação. Ela estava em estado de graça!
Teria que dividir e ser divida, mas estava inteira, completa, perfeita. Aos gritos de sorte, prazer e satisfação, ela chorou. O choro mais doce de sua vida. Choro de contentamento. Ela riu-se, gargalhou-se, emocionou-se, sentiu o mundo rodar e rodou com ele.
A carta, enfim, seria assinada!
Carta assinada, destinos selados, âncora ao mar!
Ela iria se vestir com todas as cores do mundo e, lentamente, saborearia a descida da rampa da embarcação grande e prestigiosa, avistaria de longe a princesa e todo o seu reino de volta. A vida teria sentido outra vez. Entretanto, um tanto infeliz e atordoada, lembrou que os encantados e adormecidos permaneceriam em repouso total. Somente as almas cristalinas e serenas poderiam ver e sentir junto com ela. Ela é certeza.
Certeza de aportar, certeza de estar viva, certeza de amar, certeza de ser amada.
Avante, meu comandante!
2 comentários:
Mais do que gostar de portos acredito que eles sejam necessários. Quase sempre indicam tempos de calmaria...
Belo texto!
Postar um comentário